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Um dia na vida de... uma Piloto - Nádia Branco

O Mundo do Turismo abrange um mundo de profissões (desculpem a repetição da palavra, mas achei que só esta descrevia o sentimento certo), que vivem também estórias únicas, divertidas, curiosas, emocionantes, e que passam por este contacto entre humanos.

Começo assim uma nova rubrica: "um dia na vida de...", com a esperança que após esta partilha de experiências, possamos cada vez mais conhecer o outro e respeitá-lo no seu trabalho. Como diz aquela frase "we are all in this together".

Hoje vamos estar com a Nádia Branco, uma piloto de aviões.

"São 3:30 da manhã e o alarme berra do outro lado do quarto, anunciando que é hora de desmontar o aparato que é dormir com tampões dos ouvidos e uma venda nos olhos, que entretanto já está mais lá que cá.

A necessidade de acordar a uma hora tão antinatural torna o facto de ter o telefone no volume máximo do outro lado do quarto tão facilmente explicável. “It’s show time” digo a mim mesma, ou melhor “tenta lá não ficar de trombas a manhã toda só porque não conseguiste dormir grande coisa”. E começa o corrupio de hotel-shuttle-aeroporto.

O dia de piloto de aviação comercial começa cedo ou acaba tarde. Pessoalmente, prefiro as manhãs, mas o dia roda em torno de duas questões: se terei o privilégio de ver o nascer ou o pôr-do-sol, e quando terei tempo para comer.

Sim, sou piloto, mais propriamente copiloto. Sim, sou mulher de pouco mais de metro e meio e tenho personalidade para duas mulheres do meu tamanho.

Ingressei numa das maiores empresas da Europa há cerca de um ano atrás, e desde então a vida mudou. Tendo vindo de um background de comunicação e marketing, saltei para um mundo em que é raro trabalhar com mulheres e, chamem-lhe sorte ou não, é raro tratarem-me como mulher.

Começa o voo, sejam 5h da manhã ou 22h da noite, o cérebro está em modo de voo. Sinto que sou peça fundamental para algo realmente importante para muita gente naquele dia. O dia é repleto de descolagens, aterragens, falar com controladores aéreos ingleses, franceses, espanhóis, etc. que me tratam por “ma’am” ou “madame” dependendo da geografia. Eles acham fofinho.

O dia em si é um género de rotina, uma quantidade de jibber jabber de termos técnicos e eu ali pelas vistas, na verdade, apesar de adorar tudo o resto. Sendo mulher, adoro os detalhes, saber tudo ao mais ínfimo pormenor, ser navegante e dar rumo ao dia de centenas de pessoas. Todos os Comandantes concordam: mulheres pilotos são profissionais extremamente completos.

O que acho fascinante é como todos os pilotos adoram falar das suas famílias. Há anos que tinha noção que o homem piloto era mais despegado, mais despreocupado com a vida familiar. Que ter uma mulher os tornava melhores profissionais porque parte da vida estava resolvida.

Hoje sei que não. E sendo que a família é um tema central da conversa de ocasião num cockpit, questionam-me sempre se penso em casar, ter filhos e tal. Para eles é mais fácil, certo? Não precisam de ficar em casa talvez um ano. Ao falarem comigo percebem que a vida de uma mulher piloto é toda uma agenda matematicamente cronometrada para quando me der para isso. Tudo é uma checklist, especialmente para mim.

Acaba o voo, abro a porta do cockpit e ganho noção da minha imagem ao deparar-me com os olhares intrigados dos passageiros. Há até quem peça às assistentes de bordo para trocar uma palavrinha comigo e dizer algo como “é uma surpresa ver uma rapariga ali à frente” ou “para mulher até não foi mau”, e é nesse momento em que o próprio Comandante decide fechar a porta. Eles ficam mais chocados com o sexismo do que nós mulheres.

Sendo uma pessoa que preserva bastante a minha privacidade, conscientemente ou não, já evito o contacto com o público ou expor o meu dia-a-dia, não estou nesta profissão para quebrar barreiras culturais a ninguém. Mas sim, tira-me do sério quando um funcionário do aeroporto se desata a rir quando descobre que não sou assistente de bordo - hoje não levas gorjeta.

Ou seja, não é dentro do cockpit que me sinto diferente, mas sim fora.

E depois há aquelas perguntas fascinantes:

Tens força para levantar o avião? Sim, levanto 70 toneladas todas as manhãs, só para treino.

Não tens medo? Morro de medo, especialmente que me falte comida.

O avião não parte do nada a meio do voo? Não. Não... Tipo, não.

Mas voar não é só carregar em botões e aquilo voa sozinho? Particularmente, prefiro o Gameboy, mas de fato aquilo não aterra sozinho, lamento.

A contrapartida de uma vida de eterno lag passa por ter uma família que está sempre desejosa por me ver (especialmente os gatos) e por fazermos mais esforço por estar com os meus amigos e eles agirem como se não me vissem há décadas. Ou talvez não vejam…

No final de todos os dias, o desejo que fica sempre é de que um dia todos consigam ver os cenários de cortar a respiração que vejo cá de cima."

Obrigada Nádia!

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